O Brasil acordou em 20 de novembro e, agora o país inteiro pôde dizer: “Hoje é feriado nacional.”
Sim, demorou apenas alguns séculos desde Zumbi dos Palmares, umas dezenas de anos de empurrar com a barriga no Congresso e vários ciclos de “agora vai” — mas finalmente foi.
E claro: como tudo neste país tropical, abençoado por Deus e governado por gente que prefere ignorar a pauta racial até virar hashtag, o feriado da Consciência Negra chega com cara de decisão histórica, mas com aroma de “por que isso já não existia?”.
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É curioso: o país que transforma qualquer coisa em feriado — do aniversário do município ao dia do padroeiro do bairro — demorou uma vida inteira para reconhecer a importância de um dos capítulos mais profundos da própria história.
Prova disso é que, até ontem, o Brasil funcionava assim:
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Natal: feriado.
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Ano Novo: feriado.
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Corpus Christi: feriado (ou quase, dependendo da má vontade do chefe).
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Dia do Evangélico: feriado em vários estados.
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Dia Municipal do Quadradinho Estilizado: provavelmente também.
Mas o dia que marca a morte do líder de um dos maiores símbolos de resistência da história negra?
“Vamos estudar com calma”, dizia o Congresso há anos — sempre muito cuidadoso quando o assunto é reconhecer algo que não seja bancada, emenda ou lobby.
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E agora é oficial: todo mundo ganha o direito de parar para pensar sobre a questão racial.
Ou, no caso de boa parte do país, parar para postar frase motivacional no Instagram com uma imagem aleatória de Zumbi em filtro sépia.
Empresas que nunca fizeram um curso de diversidade vão enviar e-mails como:
“Hoje é dia de refletir sobre inclusão. Amanhã voltamos ao normal.”
Influencer branco que nunca abriu um livro sobre racialidade vai gravar vídeo dizendo:
“Gente, a escravidão é um negócio que machuca muitos até hoje. Empatia sempre ✨.”
E deputado que vive reclamando de “vitimismo” vai postar arte feita pela assessoria dizendo:
“Consciência Negra é reconhecer nossa história.”
A hipocrisia brasileira é tão grande que dá até para ver de longe acenando, pedindo um like.
Um feriado que chega tarde — mas ainda é pouco
Não se resolve racismo com decreto, portaria ou calendário.
Se resolvesse, o Brasil já seria uma Suécia com ritmo de samba.
Mas feriados têm um valor simbólico poderoso: são marcos.
E toda sociedade que se recusa a encarar suas cicatrizes acaba cultivando cicatrizes novas.
O 20 de novembro como feriado nacional é um passo — tímido, tardio e óbvio — na direção certa.
É um lembrete institucional de algo que o país sempre tenta esconder debaixo do tapete:
a contribuição, o sangue, a luta e a vida de milhões de pessoas negras fundam essa nação.
E agora?
Agora, o feriado entra no calendário.
A pergunta é se ele vai entrar na consciência.
Porque, para um país que ainda nega racismo, dizer que 20 de novembro é feriado nacional é quase revolucionário.
Quase.
Mas como toda mudança no Brasil, começa assim:
com um feriado.
Com um incômodo.
Com uma conversa.
Com uma lembrança.
Com uma homenagem que, se tudo der certo, não cabe só no descanso do dia —
mas no trabalho do ano inteiro.
No fim, é um avanço.
E no Brasil, convenhamos: todo avanço é um milagre.

